Evento ocorre no SESC Cajuína
Durante o VII Congresso Internacional de Atenção Primária à Saúde (CIAPS 2025), realizado nesta quinta-feira, no Sesc Cajuína, em Teresina, especialistas de diversas áreas se reuniram para discutir os desafios atuais no enfrentamento da tuberculose (TB) e hanseníase no Piauí e no Brasil. A programação destacou avanços, alertas epidemiológicos e estratégias para a prevenção, diagnóstico e tratamento da doença — que voltou a ser a doença infecciosa que mais mata no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O III Fórum de Tuberculose e Hanseníase, que integrou a abertura do CIAPS 2025, teve como objetivo discutir o cenário epidemiológico dessas doenças, apresentar os indicadores de 2024 e compará-los com os anos anteriores, evidenciando a situação no estado. A proposta principal foi qualificar os profissionais da atenção primária, especialmente médicos e coordenadores de vigilância epidemiológica, diante do desafio de combater doenças milenares ainda marcadas por estigmas, que contribuem para uma endemia oculta no Piauí.
Ivone Venâncio de Melo
A doutoranda Ivone Venâncio de Melo apresentou dados preocupantes sobre a tuberculose no estado do Piauí. Em 2024, foram notificados 924 novos casos da doença, com um coeficiente de incidência de 27,4 casos por 100 mil habitantes. A taxa de cura foi de apenas 29,5%, muito aquém da meta recomendada pelo Ministério da Saúde. Outro dado alarmante é a coinfecção tuberculose/HIV, responsável por 23,7% dos óbitos registrados.
Segundo Ivone Venâncio de Melo, a Secretaria de Estado da Saúde do Piauí (SESAPI) tem atuado para o fortalecimento das ações de enfrentamento à tuberculose, reconhecendo a doença como um problema de saúde pública. O estado vem estabelecendo parcerias estratégicas para lidar com essa realidade local.
Apesar dos avanços na política de saúde pública, o Brasil continua enfrentando grandes desafios no controle de doenças negligenciadas como hanseníase e tuberculose. Dados recentes mostram uma preocupante estagnação — e até retrocessos — em indicadores essenciais como a taxa de cura, a cobertura do Tratamento Diretamente Observado (TDO) e a testagem de contatos.
A hanseníase permanece como uma enfermidade endêmica no país. Em 2024, foram registrados cerca de 22 mil novos casos, número semelhante ao observado nos anos anteriores, mesmo com os esforços das autoridades sanitárias. Desse total, aproximadamente 4,5% correspondem a casos em crianças, o que evidencia a transmissão ativa da doença em domicílios e comunidades.
Eliracema Alves
“Esses números são alarmantes. Ainda temos 701 casos novos de hanseníase em crianças este ano, praticamente o mesmo que em 2023, que teve 711. Isso revela que precisamos de uma resposta mais integrada, não apenas médica, mas social”, afirmou Eliracema Alves, enfermeira supervisora do Programa de Eliminação da Hanseníase (PECH).
O tratamento da hanseníase é gratuito e distribuído pelo Ministério da Saúde, com foco na atenção básica. “Não há necessidade de se deslocar para hospitais. O tratamento é fornecido na rede pública de saúde, com acesso direto nas unidades básicas”, explicou Eliracema Alves.
Artemir Coelho de Brito
Na palestra de Artemir Coelho de Brito, representante da Coordenação-Geral de Vigilância da Tuberculose do Ministério da Saúde, foi destacada a combinação de fatores sociais e os efeitos da pandemia de Covid-19 como principais causas do cenário atual.
“A tuberculose é uma doença infecciosa e transmissível, e o seu controle vai muito além do atendimento médico. Envolve enfrentar desigualdades sociais profundas”, afirmou Brito. Ele explica que a maioria dos casos se concentra em populações vulneráveis, como pessoas privadas de liberdade, em situação de rua, imigrantes e indivíduos vivendo com HIV. “Essas pessoas muitas vezes não têm acesso à moradia adequada, alimentação suficiente ou saneamento básico. Isso enfraquece o sistema imunológico e aumenta o risco de adoecimento.”
Além disso, o representante do Ministério da Saúde ressaltou que a pandemia de Covid-19 agravou o problema. Durante o período mais crítico, muitos serviços de saúde foram direcionados exclusivamente para o atendimento da Covid, deixando a tuberculose em segundo plano. “Pacientes com sintomas respiratórios eram investigados apenas para Covid-19, e os serviços de tuberculose ficaram paralisados. Isso gerou um represamento de casos e favoreceu a transmissão dentro das famílias, especialmente para crianças”, disse.
Com a retomada gradual dos serviços, o governo trabalha para resgatar diagnósticos perdidos e ampliar o acesso ao tratamento. Brito destacou o uso de tecnologias como o teste rápido molecular, que permite diagnósticos mais ágeis e sensíveis, além de novos tratamentos voltados para formas resistentes da doença.
Outro ponto fundamental citado por Brito é a busca ativa de contatos — pessoas que foram expostas ao bacilo, mas ainda não adoeceram. “Identificar e tratar esses contatos pode interromper o ciclo de transmissão e reduzir o chamado ‘reservatório de casos futuros’”, explicou.
Brasil registra mais de 22 mil casos de hanseníase em 2024: desafio persiste apesar dos avanços no SUS
Mesmo com os esforços constantes do Sistema Único de Saúde (SUS) e a ampliação de políticas públicas voltadas ao combate às doenças negligenciadas, o Brasil ainda enfrenta uma realidade preocupante em relação à hanseníase. Em 2024, o país registrou cerca de 22 mil novos casos da doença, segundo dados parciais apresentados pelo Ministério da Saúde. Desses, aproximadamente 4,5% atingem crianças, o que acende um alerta sobre a persistência da transmissão ativa nas comunidades.
Ciro Gomes, durante apresentação
“Esse número é alarmante. Recebemos recentemente o dado de que 701 casos novos ocorreram em crianças em 2024, contra 711 em 2023. Isso mostra que ainda temos uma cadeia de transmissão intensa, especialmente em regiões mais vulneráveis”, destacou Ciro Martins Gomes, representante do Ministério da Saúde.
A hanseníase é uma das doenças consideradas endêmicas no Brasil, com maior incidência nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Antes da pandemia da Covid-19, o país chegava a registrar cerca de 30 mil casos anuais, mas esse número foi reduzido nos últimos anos, em parte pelas limitações de notificação e acesso aos serviços de saúde durante a crise sanitária.
Apesar disso, Ciro Gomes reforça que o enfrentamento da hanseníase exige muito mais do que medicamentos: “Não vamos eliminar a hanseníase apenas com tratamento. Precisamos enfrentar as desigualdades sociais que sustentam a doença: pobreza, falta de saneamento, moradia precária e o estigma que afasta os pacientes do diagnóstico precoce.”
Tratamento gratuito e descentralizado pelo SUS
O tratamento da hanseníase no Brasil é gratuito e distribuído pelo Ministério da Saúde, que fornece os medicamentos à rede básica de saúde. “Hoje não há necessidade de o paciente se deslocar até hospitais de referência para ser tratado. A estratégia principal é descentralizar o cuidado, garantindo acesso direto nas unidades de atenção primária”, afirmou Gomes.
Além disso, o Brasil é um dos países que recebem doações internacionais de medicamentos para hanseníase, garantindo a continuidade do cuidado mesmo em regiões remotas.
Nova estratégia nacional: do “Janeiro Roxo” ao “Janeiro a Janeiro”
Entre as novidades da política pública, destaca-se o programa “Janeiro a Janeiro”, que amplia as ações iniciadas tradicionalmente no Janeiro Roxo — mês de combate à hanseníase — para uma atuação contínua ao longo do ano.
“Essa ação rompe com a lógica de esperar que o estado vá até o Ministério. Agora somos nós que vamos aos estados, construindo um trabalho conjunto. Essa é a proposta de um governo que atua com base na diversidade, na justiça social e no enfrentamento ao preconceito”, afirmou Ciro Gomes.
Intersetorialidade como resposta às doenças negligenciadas
A hanseníase integra o grupo de doenças negligenciadas — aquelas que afetam principalmente populações em situação de vulnerabilidade e recebem menos atenção em termos de investimento e visibilidade. Para enfrentar essa realidade, o governo federal lançou o programa Brasil Saudável, uma iniciativa interministerial que articula áreas como saúde, assistência social, direitos humanos e educação.
“A erradicação dessas doenças exige um esforço conjunto. O Brasil Saudável é o nosso compromisso com a dignidade, a equidade e a visibilidade das populações invisibilizadas por muito tempo”, disse Ciro Gomes.
Lacen-PI fortalece diagnóstico da tuberculose com ampliação de tecnologias
Marina Santos
Mariana Santos, supervisora do Laboratório de Tuberculose do Laboratório Central de Saúde Pública do Piauí (Lacen-PI), destacou os avanços na estrutura laboratorial do estado para o diagnóstico da tuberculose. Ela ressaltou o uso de tecnologias modernas, a importância da rede hierarquizada de laboratórios e os desafios logísticos enfrentados, especialmente em áreas vulneráveis.
Entre os principais recursos mencionados, estão o teste rápido molecular TRM-TB, que permite diagnóstico mais ágil e sensível, e o sistema automatizado BACTEC MGIT 960, utilizado para a cultura de micobactérias. Mariana também destacou a ampliação da testagem da infecção latente da tuberculose (ILTB) com o uso do teste IGRA, considerado um importante avanço no rastreio de pessoas infectadas que ainda não desenvolveram a doença.
“É fundamental lembrar da Portaria nº 2031, que organiza os laboratórios de diagnóstico de micobactérias de forma hierárquica, conforme seu grau de complexidade. O Lacen-PI, como laboratório de referência estadual, tem a responsabilidade de coordenar essa rede, apoiar a implantação de metodologias e dar suporte técnico aos laboratórios municipais”, explicou Mariana.
Ela ressaltou ainda a importância da coleta adequada de escarro para garantir resultados confiáveis, além dos desafios logísticos para o envio de amostras em locais de difícil acesso, como comunidades vulneráveis. “Já implantamos o TRM-TB em Parnaíba, na planície litorânea, e estamos discutindo a implantação em Picos, onde existe um equipamento proveniente do programa de HIV que pode ser compartilhado para ampliar o diagnóstico da tuberculose”, afirmou.
Elna Amaral
A médica Elna Amaral destacou a importância do diagnóstico e tratamento da Infecção Latente por Tuberculose (ILTB), enquanto o médico Marco André Cipriani, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, trouxe reflexões sobre a qualificação profissional e os desafios na atenção às hanseníases.
Elna enfatizou que o tratamento preventivo da ILTB é uma das estratégias mais eficazes para interromper a cadeia de transmissão da tuberculose, especialmente entre contatos de casos bacilíferos, pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA), gestantes, imunossuprimidos e profissionais de saúde. Ela detalhou os critérios clínicos e laboratoriais que orientam o início da terapia preventiva, ressaltando ainda os cuidados especiais em crianças, gestantes e em casos de exposição a cepas resistentes da doença.
Marco André Cipriani
Na sequência, Marco André Cipriani conduziu uma palestra sobre hanseníase, chamando atenção para a baixa capacitação de profissionais da atenção primária no diagnóstico e manejo da doença. “É um momento raro e essencial. Em um ano inteiro, só teremos essa oportunidade. Vamos nos concentrar e aproveitar o conteúdo”, alertou, de forma bem-humorada, incentivando os profissionais a se dedicarem ao tema.
Olívia Dias
A professora Olívia Dias também participou da programação, apresentando a avaliação dos contatos com base no teste rápido, conforme o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) e notas técnicas do Ministério da Saúde. Ela reforçou a necessidade de interpretar corretamente os resultados laboratoriais e integrar essas informações com dados como o histórico de vacinação BCG registrados no e-SUS.
Durante sua fala, Olívia explicou ainda os critérios clínicos para o diagnóstico da hanseníase, que incluem lesão de pele com alteração de sensibilidade, espessamento de nervos periféricos e confirmação bacteriológica por baciloscopia ou biópsia. “A avaliação neurológica detalhada dos contatos é essencial. Muitas vezes, nem conseguimos examinar todos os membros da casa, e isso prejudica o controle da doença”, explicou.
Ela lembrou que o conceito de contato também foi revisado. Hoje, segundo o novo PCDT, qualquer pessoa que tenha convivido com um paciente com hanseníase nos últimos cinco anos pode ser considerada contato, reforçando a importância do rastreio ampliado.