O Piauí é um estado brasileiro com uma história de três séculos e meio, iniciando sua existência durante o século XVII, em meio ainda a um Brasil colônia de Portugal, na busca por uma economia de gado diante a queda do comércio do açúcar. Com seus 224 municípios e 250 mil metros quadrados de terra, é uma faixa do país que se constitui com uma história de dominação dos povos originários e ocupação violenta a partir da imposição de um poder sobre o chão. E conforme aponta o professor do departamento de história da Universidade Federal do Piauí (UFPI), professor Fonseca Neto, a história dessa terra e seu povo originário era muito apagada; ele define que ‘história’ é um processo de escrita de certos fatos e apagamento de outros.
Em seu estudo mais recente, publicado no livro “Terras: domínio e servidão”, lançado no ano de 2022 no 20° Salão do Livro da UFPI (SALIPI), o professor promove um levantamento das bases registrais da posse da terra no Estado, com abordagem que explora toda história da dominação e exploração do território piauiense. Fonseca destaca que o trabalho foi produzido com objetivo de realizar uma revisão historiográfica da concentração de terra no Piauí para fins de regularização fundiária. “O objetivo principal é o conhecimento sobre a terra, a história da ocupação territorial do Piauí, que resultou na estrutura que nós conhecemos hoje em dia. O Estado necessita de ter clareza sobre essa questão para que possa estabelecer políticas públicas de enfrentamento dessa questão, inclusive o conflito de terras no Piauí”, explica.
O trabalho inicia sua análise do sistema de Sesmarias, empreitada da Coroa Portuguesa em solo brasileiro para colonização da terra do século XVI, responsáveis pela criação dos primeiros latifúndios do país, com a concessão de grandes lotes de terra a um único sesmeiro. Dentro da lógica de colonização, o professor frisa que o processo foi violento de diferentes formas, na medida que a população indígena sempre foi e continua a ser vista como figuras “selvagens”, ou “animalescas”, o que segundo Fonseca, justificaria o processo de dominação. Vistos pelos colonos como “infiés”, a partir da concepção de fé cristã, e os nativos eram politeístas, a lógica era de que se eles não fossem catequizados e submissos ao poder da Coroa, não haveria problema em exterminá-los.
Conforme aponta o professor, quando o colono europeu se estabelece em território nacional, é estabelecida uma noção de posse sobre a terra, que sequer existia durante o período pré-colonial, em que os indígenas se viam como “filhos da terra”. A terra segundo o europeu não era vista como uma parte da natureza, ou o ser humano era visto tanto quanto parte dessa logística, e sim uma noção material e comercial do solo. “O que se chama de Piauí é a história desta terra, é a história dos humanos vivendo aqui a partir da agressão colonial, da invasão colonial, que resultou em transformações muito profundas. A vida dos indígenas foi profundamente transformada, impactada, morreu uma parte muito grande deles. Quem não morreu teve que passar para o lado dos que chegaram, se aliar, até misturar-se literalmente, criando uma nova etnia”, argumenta.
Retomando o aspecto da história, segundo Fonseca Neto a história do povo originário do território brasileiro não é devidamente contada e define que o sistema de ensino ainda é focado por base em uma história eurocêntrica, resquício da colonização. “História é se esquecer, não apenas o conhecer. Tanto o que se conta, quanto o que se esquece, tem um peso muito grande no sentido da história da vida humana, e quem conta, quem são os vencedores. Os vencedores inclusive estilhaçam as memórias dos vencidos”, afirma. Argumenta que isso é uma perda cultural e social muito grande para a realidade local do estado e do país também, visto que a história dos nativos pré-colonial é de muitos milênios.
O professor acrescenta que a colonização acontece de uma forma mais complexa e invasiva do que aparenta, na medida que define a colonização como o estabelecimento do colono em uma terra estrangeira e a cultivação desse novo local segundo o modo de vida que ele está acostumado. Dessa maneira, o colonizar ocorre também através da introdução de espécies de gado, hortaliças e plantas que são exóticas para a nova terra, tomando o lugar da fauna e da flora originária. “Jumento, boi, bode, porco, galinha, nada disso é daqui. Tantas coisas que para nós é tão comum que pensamos que sempre foi assim. Até a manga, por exemplo. A manga é colonizadora. A manga é da Malásia, da Índia, de outros lugares”, enumera.
Fonseca aponta que é crucial se conhecer uma população conhecer a própria história e preservar a própria história, e cita inclusive a cidade universitária da UFPI; conta que no curso de história ministra uma disciplina com objetivos dos estudantes conhecerem a cidade de Teresina, a começar pelo campus universitário, abordando desde a sua criação, a década de 1970. “É muito importante conhecer para sabermos qual o processo que nos forja culturalmente, socialmente. Saber é um alento. Saber sobre nós é nos descobrir como os sujeitos da história. Se descobrirmos sobre nós mesmos enquanto sujeitos delas, é mais fácil mudarmos aquilo que se discorda, aquilo que possamos melhorar”, enfatiza.
O professor fala em tom de crítica do apagamento da história, afirma que é um processo intencional de tentativa de condicionamento do ensino à uma lógica acrítica, de modo a evitar questionamentos e mudanças na mentalidade e progresso social, cultural e científico. Cita um caso de quando foi diretor do Curso de Direito, em que pais de alunos pediram audiência para retirada de disciplinas de Filosofia e Sociologia da grade curricular da graduação. Coisa que ele aponta como absurda, na medida que considera sintoma de uma tendência crescente a exclusão do debate e da reflexão na esfera social e da produção de conhecimento.
Em ‘Terras: Domínio e Servidão’, o professor traz para a discussão inclusive importantes símbolos da luta contra a escravidão durante o período colonial que foram esquecidas pela história do estado. Cita um importante símbolo dessa luta, Mandu Ladino, um nativo brasileiro que durante o início do século XVIII foi líder na luta contra a opressão ao povo indígena no Piauí. Frisa que o líder foi responsável por confederar indígenas, vaqueiros, pessoas pobres de sua época em torno da luta contra o monopólio da terra e a violência estatal.
O professor finaliza dizendo que sua pesquisa se constitui como um diálogo com a obra de pelo menos 10 outros autores na área de estudo de História do Piauí, e cita os trabalhos de Dione Moraes, do historiador Odilon Nunes, padre Cláudio Melo e do pesquisador contemporâneo Cássio Borges. “A operação de estudo em uma pesquisa como essa é construir nosso retalho para costurar em um tecido mais amplo do processo do conhecimento. Ninguém inventa nada, é um diálogo, uma troca, uma dialética de experiências”, conclui.