A Universidade Federal do Piauí comunica com grande pesar o falecimento do professor Júlio Romão da Silva. Aos 95 anos, o jornalista, etnógrafo, escritor que pertencia à Academia Piauiense de Letras, havia recebido ano passado o título Doutor Honoris Causa da UFPI.
O Brasil, o Piauí e o Rio Janeiro, em particular, perderam uma referência significativa da luta pela afirmação do povo negro.
De formão e de caneta
Fonseca Neto*
Teresina foi erguida a partir de 1850 por operários negros escravizados pertencentes ao Fisco. Escravos de propriedade pública, parte de bens dotais de princesas imperantes, deslocados das fazendas de criar estatizadas no tempo do conde de Oeiras.
Desses trabalhadores originais vindos para o município do Poti para erguer a "vila nova" e de tantos outros existentes nas fazendas locais, admite-se que descenda a população negra da cidade de Teresina de hoje em dia, bastante expressiva.
Tais considerações iniciais são relevantes para realçarmos a figura de um teresinense negro que bem representou essas antigas linhagens da vida local, filho de Joana e Luís Querino da Silva, o honorável doutor pela UFPI, Júlio Romão da Silva, nascido em 22 de maio de 1917.
Escritor e jornalista que bem devotou seu labor à causa da humanidade por toda a vida - no que diz respeito à odiosa opressão do povo negro nesta margem do Atlântico -, Júlio conheceu a via tortuosa através da qual os filhos do eito e dos terreiros de fazenda chegam à cidade e são destinados às funções tidas como inferiores. Foi ele alfabetizado em Teresina e já ingressando numa escola de aprendizes de marcenaria, isto é, um estabelecimento para filhos de empobrecidos aprenderem um ofício manual, pois os usos treinados das letras e da leitura eram destinados às funções "nobres" da aristocracia de pele alva e espírito branco.
Inconformado com as asperezas do meio que lhe propiciara a nascença - ficou órfão de pai aos quatro anos - rumou ele para a capital federal, o Rio de Janeiro, a viagem para e os primeiros tempos na, constituindo verdadeiros percalços, os quais contornou por seu caráter fundado na coragem de enfrentar diversidades e com muita retidão.
Em pouco mais de dez anos de Rio, uma cidade de maravilhas negras sem par, se tornou uma personalidade reconhecida por seu labor no mundo da imprensa e da cultura literária, cultivou relações importantes em diversos níveis, inclusive na burocracia, mas sempre nos cultivos da questão relacionada à defesa da condição afrodescendente, da chamada negritude, tal se diria anos mais tarde. Com formação acadêmica em Filosofia e Jornalismo, além de estudos de Antropologia e Etnologia, escreveu textos relevantes tratando dessa questão e dos pródromos de sua luta, em especial sobre Luís Gama, o intimorato advogado e poeta baiano. Tem elaboração pesquisada e publicada sobre língua e geonímia tupi, além de outros ensaios, parte desses estudos dada em função de ter sido um dedicado servidor público nas áreas abrangidas hoje pelo IBGE e a Funai.
Em vários depoimentos sobre sua vida referiu-se a um sonho de menino pobre da Teresina dos anos 1920 e começo dos 30: "piruava" conversas de acadêmicos da recém-criada Academia Piauiense de Letras, no Bar Carvalho e noutras rodas de escritores e dizia a si mesmo que se tornaria um deles. De fato, sua vida no Rio assim o fez, passando a integrar a APL em 1988. Por mais de uma vez intentou a Brasileira de Letras. Membro da Associação de Geógrafos do Brasil e de outras importantes instituições de pesquisa nos campos mencionados.
Por organização de dois admiradores da pessoa e da contribuição Juliana, Ací Campelo e Élio Ferreira, e o apoio da UFPI, foi lançado o volume "Júlio Romão da Silva - entre o formão, a pena e a flecha". Trata-se da "fortuna da obra de um escritor negro brasileiro" que reedita, além de vários textos de Silva, entrevistas e apreciações outras sobre sua vida e obra.
O evento autografário ocorreu na sede da APL, dia 22 de dezembro de 2012, encerrando o ano acadêmico. Bonita festa para Júlio, que relutou em sair de sua casa para comparecer: impôs-se um regime existencial meditado e conotado em visões de passagens celestinas, regrando-se na alimentação e na leitura. Falou pela Casa o acadêmico Zózimo Tavares Mendes, além dos organizadores. Ainda são odiosas as manifestações de preconceito contra negros no Brasil. Daí a justeza e oportunidade das homenagens a Júlio.
(Artigo originariamente elaborado para saudar a publicação pela UFPI/APL do compêndio acima citado; publicado, agora, atualizado, em sua memória, pelo Portal da UFPI, quando da ocorrência do falecimento do Dr. Júlio Romão da Silva, neste sábado, dia 9 de março de 2013. Uma homenagem da UFPI, que o honrou e foi honrada com a titulação doutoral outorgada, o fazendo pelo conjunto de sua obra devotada à grandeza da cultura nacional brasileira. Homenagem extensiva à sua esposa e filhos).
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Fonseca Neto, professor do Departamento de Geografia e História da UFPI e ocupante da Cadeira 1 da Academia Piauiense de Letras.
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