Um historiador com formação em Direito, crítico literário, jornalista, modernista, organicista ou apenas o "pai do Chico". Esse é Sérgio Buarque de Holanda, considerado pelo professor de História da UFPI, João Kennedy Eugênio, e por muitos, como um dos maiores intelectuais do Brasil.
A paixão por estudar Sérgio Buarque e todas as suas obras rendeu a João Kennedy um prêmio que não era seu objetivo, mas que, segundo ele, o "deixou muito honrado": o Prêmio Jabuti 2012, considerado a maior premiação literária do Brasil. Produzido pela Editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFPI), o livro "'Ritmo espontâneo: organicismo em raízes do Brasil de Sergio Buarque de Holanda" conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas.
A obra, que ficou em segundo lugar entre três premiadas, é uma parte da tese de Doutorado de João Kennedy, na qual ele se debruça sobre dois livros de Sérgio Buarque, Raízes do Brasil e Caminhos e Fronteiras. "O livro premiado consiste somente na interpretação que eu faço de Raízes do Brasil", explica o professor. O recorte é suficiente para João Kennedy traçar a visão de mundo deixada por Sérgio Buarque: "é uma interpretação do modo de ser da sociedade brasileira e é uma valorização do ser. O que Sérgio nos propõe é que nós sejamos nós mesmos e nos insiramos na modernidade sendo nós mesmos, sem perder as nossas características mais valiosas", sintetiza.
Em entrevista ao site da UFPI, João Kennedy fala sobre estas questões, sobre a construção do livro, explica o que é a visão organicista tão presente em sua obra, bem como nos conta um pouco sobre Sérgio Buarque de Holanda.
Como surgiu o interesse em estudar Sérgio Buarque de Holanda?
O meu interesse por Sérgio Buarque, o maior historiador de todos os tempos e um dos maiores intelectuais do país, remonta há muito tempo, ainda na época da graduação em História, quando eu descobri alguns de seus livros. Fiz o meu Mestrado em História, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, que tratava de Raízes do Brasil, que é um ensaio publicado por Sérgio em 1936. No Doutorado eu continuei a pesquisa, mas sob outra perspectiva e estendendo, não analisei apenas Raízes do Brasil, mas fui até 1957, 21 anos depois, para o livro chamado Caminhos e Fronteiras. Então, a tese trata de Raízes do Brasil e Caminhos e Fronteiras.
"Raízes do Brasil" é um livro?
É. E é o primeiro livro que Sérgio publica. E "Caminhos e Fronteiras" é o terceiro, de 1957. Então o livro que ganhou o prêmio é só a primeira parte da tese. Bem, é uma tese que tem uma tese, ou seja, eu estou defendendo algo, tem uma afirmação que eu quero demonstrar. E a tese é esta: a de que há a presença de uma visão de mundo nos livros de Sérgio, ou pelo menos, uma visão de sociedade. Até então, ninguém tinha tratado disso. A ideia é a seguinte: Em "Raízes do Brasil", Sérgio dá a sua visão de sociedade e em "Caminhos e Fronteiras", escrito 21 anos depois, ele continua com a mesma visão. Quer dizer, se temos uma visão que aparece em dois livros tão diferentes e depois de tanto tempo, é porque essa visão de mundo deve ser muito importante. Portanto, eu teria que ver se isso realmente se comprovava, e, se comprovada, como é que isso estava organizado. Então, fui fazer uma análise detalhada de "Raízes do Brasil" e cheguei a este livro. O curioso é que quando eu estava concluindo a tese, imprimindo a mesma para mandar para a banca, descobri um texto de Sérgio Buarque, que foi meu ponto de chegada. Trecho esse que ninguém nunca tinha visto, que eu nunca tinha visto, em que o Sérgio diz aquilo que eu tinha intuído: que "Raízes do Brasil" se baseia numa concepção orgânica. No trecho, primeiro ele caracteriza uma visão de mundo, valorizando a personalidade de cada cultura, destacando o que cada uma tem de singular e único. Aí, ele diz que essa ideia filia-se às concepções orgânicas, que eu chamo de organicismo da sociedade. Está em "Raízes do Brasil", expressamente, as concepções orgânicas de sociedade.
O que Sérgio Buarque fala exatamente em "Raízes do Brasil"?
Como o nome já sugere, é uma interpretação do modo de ser da sociedade brasileira. E não é só isso! É aí que meu livro entra, porque além de ser uma interpretação, é uma valorização do ser. Todo mundo pensava que Sérgio interpretava e criticava, querendo que a sociedade mudasse, que a sociedade se modernizasse, deixasse o passado para trás, e eu fui percebendo que não era só isso. Que o Sérgio possui críticas em "Raízes do Brasil", não há o que contestar. Mas há também uma valorização do nosso modo próprio de ser. O que ele está tentando é propor que nós sejamos nós mesmos e nos insiramos na modernidade sendo nós mesmos, sem perder as nossas características mais valiosas. Quais seriam elas: informalidade, a nossa proximidade que não vamos encontrar em outro país. Não é que a gente queira fazer, é o que nos caracteriza, você vai encontrar isso no Rio Grande do Sul, vai encontrar no Amapá, no Piauí, com variações. Cada região tem um modo de ser, mas isso só existe no Brasil.
A maior descoberta de sua tese é que além da interpretação, há a valorização do nosso modo de ser. Isso é o organicismo?
É. O que eu chamo de organicismo, define bem como a noção de que a cada povo cumpre discernir e cultivar, com carinho, sua personalidade essencial e irredutível. Isso é uma valorização. O organicismo pensa o seguinte: cada povo, cada cultura, cada sociedade é como um indivíduo, é particular, é único, só tem aquele. E como um indivíduo, tem qualidades e tem defeitos. E os defeitos que possui não podem ser suficientes para que se queira que ele desapareça. Para ficar mais claro, posso dizer que Gilberto Gil tem uma música que é organicista, "Toda menina baiana". A música diz assim: "toda menina baiana tem um canto, tem encanto, tem um jeito e tem defeito também, que Deus dá". Gil faz uma música que é assim o tempo todo, mostrando pontos positivos e negativos e coloca que Deus dá. Ou seja, no pacote não é algo que a gente possa querer separar e eliminar. Depois, Gil fala da Bahia. Ele diz que "a Bahia é primazia, primeiro carnaval, primeiro índio abatido também". Aí ele fala que "Deus dá, que Deus deu". Então, é a nossa história. Não temos como ficar recortando-a, não temos como ficar só com uma parte e esquecer a outra. Nós somos isso, nós viemos desse passado, nem todo ele foi positivo, agradável, mas ele nos constitui, nós estamos aqui por isso. Então, o organicismo é a valorização daquilo que existe, seja indivíduo, seja coletividade, vista como tendo uma personalidade, como uma impressão digital, um DNA. Essa é a ideia dele, que está em "Raízes do Brasil" e estende-se em "Caminhos e Fronteiras". O Sérgio critica o fato dos brasileiros serem deslumbrados com coisa estrangeira. Ele acha que isso não é tão bom. Porque isso é um pouco se negar, não gostar muito de si. É essa a ideia do Sérgio. Se você gosta muito de si, você não vai ficar buscando ser os outros. Até pode, porque acha bonito uma roupa ou um sapato, mas não vai ser um modelo. Você não vai ter vergonha, querer copiar tudo o que o outro faz por ter vergonha daquilo que você mesmo é.
Nos fale um pouco sobre o Sérgio Buarque, suas obras. Ele escreveu mais intensamente sobre a questão da interpretação do ser?
Vamos lá. Quem é Sérgio Buarque? É um dos maiores intelectuais do Brasil. Eu digo é, porque ele permanece. Sérgio nasceu em 1902 e faleceu em 1982, quando ia completar 80 anos. Ele participou do movimento Modernista, mas não compareceu na Semana de Arte Moderna por estar de prova final. É um tremendo intelectual. Viajou para a Alemanha em 1929, lá descobriu inúmeros intelectuais. Depois viajou nos anos 40 para os Estados Unidos, nos anos 50 para a Itália. Era uma figura extremamente respeitada pelos pais, pelos colegas. Escreveu "Raízes do Brasil" em 1936 e depois disso muitas outras obras, sobretudo de História; entre estas "Monções" (1945), "Caminhos e Fronteiras" (1957), "Visão do Paraíso" (1959) e "Do Império à República" (1972). Não só escreveu livro de interpretação do Brasil e livros de História, ele também tinha uma página de crítica literária, na qual escreveu muito sobre romance, poesias, contos. Era um dos nossos maiores críticos literários. Foi correspondente de jornal fora do Brasil e até hoje estudiosos estão descobrindo e publicando textos inédios de sua autoria.
As obras de Sérgio Buarque são eminentemente modernistas ou evoluiu de acordo com os movimentos?
Há quem diga que a produção de Sérgio Buarque, de história, sobretudo, mas também de literatura, é marcada somente pelo Modernismo. Agora, o que eu procuro mostrar é que o Sérgio já pensava como Modernista antes de ser Modernista. Por exemplo, em um texto publicado antes da Semana de Arte Moderna, ele já propunha o que depois os Modernistas iriam propor. E qual é a base dessa minha conclusão? A minha resposta é uma só: é a visão organicista. Visão essa que está no Sérgio desde os 17 anos de idade, quando ele publicou um artigo chamado "Originalidade Literária", propondo que um povo devia buscar a originalidade e não imitar os outros. Esse é o argumento de "Raízes do Brasil" e é o argumento do Modernismo também; como Macunaíma e outros mais obras do período. Se perguntar qual foi a base disso no Modernismo e dos textos de Sérgio, é, sem dúvida, a valorização de um cultura no que ela tem de próprio, da sua literatura, sua música, seus costumes. É o apreço pelas manifestações da vida, como ela é para um dado povo, uma dada sociedade.
A Semana de Arte Moderna queria causar esse choque na população, fazer com que as pessoas pensassem diferente, inclusive a própria sociedade naquela época não aceitava os textos, o teatro que os Modernistas estavam trazendo. Isto também aconteceu com Sérgio?
Não. Os livros dele sempre foram muito bem recebidos, embora muito pouco compreendidos. Há aqueles que leem, aplaudem, gostam, mas são textos desafiadores, densos, complexos. São obras que pouca gente tem a coragem de pesquisar.
Falemos um pouco do prêmio. Não era seu objetivo, claro, mas há uma satisfação pessoal, já que um dos prêmios é da Editora, por conta de toda a apresentação do livro, e o outro prêmio é do conteúdo, este de sua autoria.
Não, não fui apegado a nenhum prêmio, nenhum tipo de ganho. É uma pesquisa minha tentando compreender a obra de Sérgio Buarque de Holanda. Porém, o prêmio Jabuti é o mais importante prêmio literário do Brasil, e já tem mais de 50 anos. Então é prestigioso sim. Muita gente boa já foi premiada, portanto estou em ótima companhia, e me sinto honrado.
E você, tem outros livros publicados? Tem interesse de publicar a outra parte de sua Tese, sobre o livro "Caminhos e Fronteiras", também de autoria de Sérgio Buarque de Holanda?
Tenho livro sobre a poesia de H.Dobal, tenho outro livro que se chama "O Outro ocidente: Sérgio Buarque de Holanda e a interpretação do Brasil" (1999). Organizei coletâneas com outros autores, como "Gente de longe: histórias e memórias" (2006), "Cantiga de viver: leituras sobre a poesia de H.Dobal" (2007), "Ficção e história: encontros com Luciano" (2010) e "Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas (2008)". Já sobre a publicação, eu quero descansar um pouco, porque terminei a tese em 2010 e já publiquei em 2011, tudo foi muito corrido. Vai demorar um pouco mais para ser publicada a outra parte da tese.
Para finalizar, faça uma conclusão sobre o livro premiado, Sérgio Buarque e a importância dos dois.
Sérgio é estudado em muitas áreas. No Direito, pois Sérgio era formado na área, apesar de não ter seguido a carreira. Também é estudo nas áreas de Sociologia, Antropologia, História e Literatura. O reconhecimento do Sérgio Buarque cresce especialmente dentro da universidade, mas também fora dela. O intelectual dizia que a cultura é mais importante do que o Estado, ou seja, este não pode sair impondo o que as pessoas devem ou não fazer. Ele acredita que Lei tem que corresponder à cultura. Essa é, sem dúvida, a maior contribuição do Sérgio Buarque de Holanda à sociedade.
Cerimônia de Premiação
A cerimônia de entrega do Prêmio Jabuti aconteceu no dia 28 de novembro, na Sala São Paulo, localizada na Praça Júlio Prestes, na região central da cidade de São Paulo. O diretor da EDUFPI, Ricardo Alaggio, representou a universidade e recebeu as duas estatuetas, do autor e da Editora. A premiação é inédita no Piauí, sendo a primeira vez que a UFPI e um escritor piauiense conquistam o prêmio.
Professor Ricardo Alaggio na cerimônia de premiação em São Paulo