O cinema, assim como a sociologia, tem vertentes voltadas para o desvendamento das máscaras sociais. O campo católico, em especial, é dividido por tendências, linhas de pensamento conflitantes entre si. Convite para ler Antonio Gramsci e Pierre Bourdieu. “Catolicismos”? Dentre as suas correntes, destaco a teologia da libertação, retratada no filme ROMERO (1989), dirigido por John Duigan. O título fílmico é uma alusão ao arcebispo Dom Oscar Romero, uma das referências católicas quando refletimos sobre a imagem de um Cristo libertador, na sua opção preferencial e solidária pelos pobres. Em ROMERO, a narrativa fílmica mostra o processo da construção de uma liderança religiosa na corporificação dos princípios teológicos de um Cristo comprometido com os ideais de liberdade e justiça social. Com os seus limites institucionais, uma religião em sua faceta não opiácea?
Um sacerdote no enfrentamento de estruturas sociais geradoras de desigualdades, apartações e cerceamentos ao ir e vir. Contextos ditatoriais, autoritários, negadores da cidadania em tempos de violência institucionalizada e morte civil. Diante da iniquidade de situações de atentado contra a vida, qual deve ser a postura de quem diz ser cristão? Cumplicidade, indiferença ou indignação? O que fazer? Nos tribunais coríntios, o exemplo apostólico de Paulo, nos atos dos apóstolos, recebe uma mensagem de encorajamento: “Não tenhas medo; continua a falar e não te cales, porque eu estou contigo” (At 18,9-10). Palavras tortas e cortantes enunciadas pelos discípulos perseguidos e candidatos ao martírio.
Na El Salvador do ano de 1977, sob uma ditadura militar, rebenta um discurso profético, de anúncio evangélico e denúncia contra um regime opressivo, violento e perseguidor de quem ousa combatê-lo. Enfrentamento com risco de perda da própria vida por defender uma sociedade justa, igualitária e livre. Na luta, em nome de um Deus libertário, equânime, aliado das classes sociais exploradas, ecoa uma voz cristã que incomoda e desperta o ódio dos opressores. No seguimento de um Jesus do lado dos oprimidos, aquele que foi assassinado por desafinar o coro dos contentes do seu tempo histórico, discursa um cristão indignado, inconformado, resistente, seguidor do mestre de um cristianismo voltado para revolucionar um mundo farisaico, de sepulcros caiados, desumano, a serviço do Deus dinheiro.
“Donde estan los desaparecidos”. Pergunta doída de um povo massacrado por uma das bárbaras ditaduras latino-americanas. Diante do grito dos excluídos, desponta um questionamento clerical: “Como posso abençoar uma situação em que pessoas inocentes desaparecem noite após noite?” Com a palavra profética, Dom Oscar Romero nega a sua benção a um ditador serviçal de um capitalismo selvagem, colonizado, incompatível com os valores humanitários, cristãos: “Sou um pastor que junto a seu rebanho começou a aprender uma bonita e difícil verdade. Nossa fé requer que vivamos atentos ao que ocorre neste mundo. Continuo acreditando que a injustiça econômica é a causa principal de nossos problemas. É dela que provém toda a violência. A igreja tem que se identificar com os que lutam pela liberdade, tem que defendê-los e compartilhar de sua perseguição”.